terça-feira, 15 de julho de 2014

A irreverência e o lirismo de um pavão bizarro


Resenha originalmente publicada aqui.

Pavão Bizarro, primeiro livro de poemas do mineiro Emmanuel Santiago — ele nasceu no “terceiro menor município do Brasil” (São Lourenço) —, é uma obra ao mesmo tempo irrequieta, quando ironiza os parnasianos (“A fábula de Fabergé”, que dá título ao livro), muito bem codificada, em seus sonetos que tratam dos mais diversos temas; nos octassílabos que cinge com primor e mesmo em poemas concretos com características lúdicas, como “Direitesquerda”. Há, ainda, as referências ao mar, a dois Joões: Gilberto e Cabral, à sua musa, Tatiane, que não tem nada a ver com a musa parnasiana que ele agride e explora, mas é uma mulher que recebe um soneto com rosas que se alimentam dele.

A pluralidade da obra de Santiago, de apenas 70 páginas, é impressionante. Tudo o que ele se dispõe a fazer em “Pavão Bizarro” fica perfeito. Das ruas calçadas de pedras das cidades históricas de Minas Gerais, ele desenvolve poemas a igrejas conhecidas, com seu cheiro de incenso, seu pó de ouro, apontando, contudo, uma devoção meio descrente.

Seus sonetos são o que há de mais especial no livro. Particularmente, selecionou-se o seguinte:

Soneto piedoso

Penso num Jesus pregado na cruz,
talhado bem com cuidados de arte
e um pano vermelho cobrindo as partes
pouquíssimas vezes postas à luz.

Penso num Jesus na cruz, Ó Jesus,
em teu coração tão santo, um infarte!
Teu corpo na cruz foi o estandarte
com manchas de sangue e bolhas de pus!

Deixou-te o Pai, morres órfão, sozinho,
a fronte rasgada pelos espinhos
e o corpo desfeito entre tantas chagas.

Que pena de ti (cadáver, menino?)
esculpido em teu caráter divino,
não te coças, não fodes e não cagas.”

Essa humanização de Jesus na cruz ele também faz quanto às musas de Dionísio em “Soneto idílico”, retirando delas toda a capacidade de influir num poema formalmente perfeito, do ponto de vista da Antiguidade Clássica, mas concedendo-lhes o dom de inspirar um soneto contemporâneo, meio debochado. Nem os arcadistas escapam da fúria da caneta de Santiago. Em “Uma lira para Marília”, ele faz um pastiche de Tomás Antonio Gonzaga. Aliás, mesmo quando escreve um soneto para João Gilberto, Santiago parece ter um sorrisinho moleque, como quem desbanca o pai da bossa nova. Essa impressão se desfaz ao longo da leitura do livro, mas sua fúria de tudo desestruturar, às vezes, confunde.

Pavão Bizarro é um livro para se ler várias vezes e revela o talento impressionante de um autor provinciano que fala de São Paulo com a mesma desenvoltura com que trata as igrejas das cidades mineiras. É uma obra para se ler várias vezes. Quando se a toma em mãos e se a lê pela primeira vez, ao fim das 70 páginas o desejo de relê-lo imediatamente acomete o mais ávido leitor de poesia. Boa leitura!


Vivian de Moares, julho de 2014.

Informações do autor:
Vivian de Moares é jornalista e poetisa, autora de Sonetos sombrios (2012), Poemas e canções (idem) e haikais/ vivian/ de moraes (2013).

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