Tal como Rubem
Braga, em uma de suas crônicas mais inspiradas, construiu um pavão “arco-íris
de plumas”, Emmanuel Santiago, em seu livro de estreia, resolveu dar forma,
cuidadosamente, a um Pavão bizarro.
Neste caso, porém, não se trata de um olhar lúdico e carregado de ternura sobre
o prosaico, mas de uma lâmina afiada que, ponto por ponto, desperta e fere os
sentidos do leitor mais precavido.
O primeiro ato do
rito macabro é encenado pelo poeta
no revival parnasiano de poemas como
“A fábula de Fabergé”, que abre o volume, e “O objeto soneto”. Não há como
deixar de entrever um riso sardônico na busca obsessiva e no fascínio do eu
lírico pela perfeição: uma voz cujo virtuosismo técnico incessante se volta
também contra o leitor, como se nota de forma mais explícita no “Soneto sem
assunto”: “Pirotecnia pura! Mas agora,∕que o soneto está quase terminado,∕o
relógio murmura: duas horas”. O poema, embebido no torpor das formas fixas,
escancara o seu próprio constructo e
lança notas de cinismo e fel que, salvo engano, podem se dirigir, em sentido
mais amplo, a boa parte da poesia contemporânea, cujo solipsismo exasperante
nada mais é do que a expressão (essa sim, pura),
de um grande comodismo em nome da virtuose. Esse movimento de aproximação e
distanciamento crítico do livro de Santiago em relação à tradição está presente
desde o título da coletânea: se “pavões bizarros” era o epíteto com que Vicente
de Carvalho pejorativamente designava os parnasianos (antes dele próprio se
tornar um grande ícone da escola que, durante muitas décadas, tornou-se a
referência de como se fazer poesia), a caricaturização de procedimentos
estéticos levados ao limite permite ao autor imprimir as marcas do mundo
estilhaçado até mesmo no que parecia mais inabalável. O fascínio pela deusa mutilada
(“Vênus de Milo”) e o “coito sem gozo” da Musa Impassível (“Furor Parnasiano”)
já trazem algo do veneno e da profanação que, além do referido sarcasmo, irão
contaminar, sem piedade, os outros poemas do conjunto.
No segundo ato desse
rito muito particular, o eu lírico invoca as suas origens, o mundo da província
e a atmosfera familiar, sem abandonar, contudo, o seu poderoso olhar enviesado. É assim que o poema
“Igreja de São Pedro dos Clérigos (Mariana)” evoca não o “pus de ouro” dos
santos, mas a dourada claridade que invade a nave e a eleva no espaço, etérea
como a “luz balão” cabralina. A descrença e a visada em negativo de um eu lírico que sabe o sagrado um “cristal
trincado” e, como Bandeira, tem a certeza de que o espírito pesa mais que o
corpo (“Igreja de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto))” é fruto da mesma
impureza que celebra a “espúria matéria escura” do nosso “Anjo torto” (e
escuro) Aleijadinho, e que realiza a transubstanciação diabólica e corpórea da
“Eucaristia”.
E, por fim, o
terceiro ato desse rito demoníaco é celebrado claramente em “Entropia”, quando
a via láctea bilaquiana se faz um “rastro de mênstruo” e as “ninfas
sifilíticas” do “Soneto Idílico” são voluptuosamente estranguladas em nome de
Dionísio. A essa altura, o “Ângelus”, um momento tão mineiro e alentador, é a
encarnação da Lua Negra, quando, também no avesso da virtuose parnasiana, “as
coisas, vacilantes, soçobram nas sombras”. Aqui, atam-se as pontas dos poemas
iniciais do livro: à projeção sinistra de um mundo estilhaçado e cruento não
escapam, por contaminação, as pérolas, as bailarinas de caixinhas de música, os
origamis e os bonsais cultivados com delicadeza por essa subjetividade
provocativa, cujo vouyerismo sinistro
se compraz, narcoticamente, com a fumaça da cidade grande.
Ao beber nas
tradições e ao mesmo tempo recusá-las como fórmulas prontas, procurando (sem
necessariamente encontrar) uma dicção própria, mas fazendo dessa procura a
matéria da sua poética, o inquieto autor desvela os impasses da lírica nos dias
de hoje, quando os vernissages,
matérias de capa e conluios de patota valem (muito) mais do que a própria
criação. Enfim, um livro que, sarcasticamente, toma a bizarrice dos
poetas-pavões ao pé da letra.
Fabio Cesar Alves, fevereiro de 2014.
Informações do autor:
Fabio Cesar Alves, professor de Literatura da USP.
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