sábado, 12 de julho de 2014

Plumas de sangue e fel: introdução a "Pavão bizarro", de Emmanuel Santiago

Tal como Rubem Braga, em uma de suas crônicas mais inspiradas, construiu um pavão “arco-íris de plumas”, Emmanuel Santiago, em seu livro de estreia, resolveu dar forma, cuidadosamente, a um Pavão bizarro. Neste caso, porém, não se trata de um olhar lúdico e carregado de ternura sobre o prosaico, mas de uma lâmina afiada que, ponto por ponto, desperta e fere os sentidos do leitor mais precavido.

O primeiro ato do rito macabro é encenado pelo poeta no revival parnasiano de poemas como “A fábula de Fabergé”, que abre o volume, e “O objeto soneto”. Não há como deixar de entrever um riso sardônico na busca obsessiva e no fascínio do eu lírico pela perfeição: uma voz cujo virtuosismo técnico incessante se volta também contra o leitor, como se nota de forma mais explícita no “Soneto sem assunto”: “Pirotecnia pura! Mas agora,∕que o soneto está quase terminado,∕o relógio murmura: duas horas”. O poema, embebido no torpor das formas fixas, escancara o seu próprio constructo e lança notas de cinismo e fel que, salvo engano, podem se dirigir, em sentido mais amplo, a boa parte da poesia contemporânea, cujo solipsismo exasperante nada mais é do que a expressão (essa sim, pura), de um grande comodismo em nome da virtuose. Esse movimento de aproximação e distanciamento crítico do livro de Santiago em relação à tradição está presente desde o título da coletânea: se “pavões bizarros” era o epíteto com que Vicente de Carvalho pejorativamente designava os parnasianos (antes dele próprio se tornar um grande ícone da escola que, durante muitas décadas, tornou-se a referência de como se fazer poesia), a caricaturização de procedimentos estéticos levados ao limite permite ao autor imprimir as marcas do mundo estilhaçado até mesmo no que parecia mais inabalável. O fascínio pela deusa mutilada (“Vênus de Milo”) e o “coito sem gozo” da Musa Impassível (“Furor Parnasiano”) já trazem algo do veneno e da profanação que, além do referido sarcasmo, irão contaminar, sem piedade, os outros poemas do conjunto.

No segundo ato desse rito muito particular, o eu lírico invoca as suas origens, o mundo da província e a atmosfera familiar, sem abandonar, contudo, o seu poderoso olhar enviesado. É assim que o poema “Igreja de São Pedro dos Clérigos (Mariana)” evoca não o “pus de ouro” dos santos, mas a dourada claridade que invade a nave e a eleva no espaço, etérea como a “luz balão” cabralina. A descrença e a visada em negativo de um eu lírico que sabe o sagrado um “cristal trincado” e, como Bandeira, tem a certeza de que o espírito pesa mais que o corpo (“Igreja de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto))” é fruto da mesma impureza que celebra a “espúria matéria escura” do nosso “Anjo torto” (e escuro) Aleijadinho, e que realiza a transubstanciação diabólica e corpórea da “Eucaristia”.

E, por fim, o terceiro ato desse rito demoníaco é celebrado claramente em “Entropia”, quando a via láctea bilaquiana se faz um “rastro de mênstruo” e as “ninfas sifilíticas” do “Soneto Idílico” são voluptuosamente estranguladas em nome de Dionísio. A essa altura, o “Ângelus”, um momento tão mineiro e alentador, é a encarnação da Lua Negra, quando, também no avesso da virtuose parnasiana, “as coisas, vacilantes, soçobram nas sombras”. Aqui, atam-se as pontas dos poemas iniciais do livro: à projeção sinistra de um mundo estilhaçado e cruento não escapam, por contaminação, as pérolas, as bailarinas de caixinhas de música, os origamis e os bonsais cultivados com delicadeza por essa subjetividade provocativa, cujo vouyerismo sinistro se compraz, narcoticamente, com a fumaça da cidade grande.

Ao beber nas tradições e ao mesmo tempo recusá-las como fórmulas prontas, procurando (sem necessariamente encontrar) uma dicção própria, mas fazendo dessa procura a matéria da sua poética, o inquieto autor desvela os impasses da lírica nos dias de hoje, quando os vernissages, matérias de capa e conluios de patota valem (muito) mais do que a própria criação. Enfim, um livro que, sarcasticamente, toma a bizarrice dos poetas-pavões ao pé da letra.

Fabio Cesar Alves, fevereiro de 2014.

Informações do autor:
Fabio Cesar Alves, professor de Literatura da USP.

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